trecho do livro: o ano da morte de ricardo reis, ed. caminho, 14.ª ed., p. 396 de jose saramago

"talvez isto é que seja o destino, sabermos o que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e ficarmos quietos, olhando, como puros observadores do espectáculo do mundo."

tudo sobre minha mãe (cena do filme com roteiro e direção de pedro almodóvar)

"Por causas alheias à sua vontade duas das atrises que diariamente triunfam sobre este cenário não podem estar aqui hoje. Coitadas. O espetáculo será cancelado. Quem quiser, receberá o dinheiro do ingresso de volta. Quem não tiver nada melhor para fazer já que vieram ao teatro, é uma pena irem embora. Se ficarem, eu prometo divertir vocês com a história da minha vida. Adeus. Eu lamento. Se eu entediar vocês, finjam que roncam. Assim. rrrrrrrrrrrrrr. Eu captarei rápido e não vão ferir meus sentimentos. É sério.
Chamam-me de Agrado porque, a vida inteira, só pretendi tornar a vida dos outros agradável. Além de agradável, sou muito autêntica. Olhem só que corpo! Tudo feito sob medida. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Jogadas no lixo, no ano seguinte ficou assim depois de uma surra. Sei que me dá personalidade, mas, se soubesse antes, não mexeria nele. Vou continuar. Peitos: dois, porque não sou nenhum monstro. 70 mil cada um, mas, eles já estão superamortizados. Silicone nos lábios, testa, maçãs do rosto, quadris e bunda. O litro custa umas cem mil. Calculem vocês, porque eu já perdi as contas. Redução de mandibula: 75 mil. Depilação definitiva a laser. As mulheres também vêm dos macacos. Até mais do que os homens. 60 mil por sessão. Depende da cabeluda que se é. O normal é entre duas e quatro sessões. Mas, se é uma diva do flamenco, precisará de mais, claro. Bem, como eu estava dizendo sai muito caro ser autêntica. E, nestas coisas, não se deve ser avarenta. Porque nós ficamos mais autênticas quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que somos."

catarse (cura = liberdade)

expressividade que a superficialidade recalcou
movimentos que o medo congelou
não era uma questão de escolha
era uma imposição natural

um bonde de emoções pedindo vivência
um universo indisível pedindo interpretação
alguma relação que explicasse tamanha putrefação
sensibilidade e solidão

não conseguia expandir
de um lado pro outro
batendo cabeça
lascando seu próprio corpo

numa jaula de carne e osso
alimentado por indecisão
e com a obesidade em ascensão
um leão de pedra

duelo

era o conflito
que não deixava que as coisas fluissem
esse tal duelo entre o ideal e o real
não dava certo porque não era real
era o idealizado
era o melhor que podia ser
não era natural
era forçado
talvez pra dar um impulso
pegar no tranco
partida inicial
mas não era real
por isso não convencia
queria mas não era
não deixando de ser
era bom
era perto
era sugador
íma
turbo
plus action
a todo vapor
...
não era
mas deu pra perceber
que esta alí
e é 
extraído do real
realizado

da janela é assim

todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
relógio que atrasa também adianta
remédio que cura pode matar
meu corpo é quente e estou sentindo frio
os mortos estão vivos e os vivos estão mortos
pode ser que sim e talvez não seja
me perdi e agora pode ser que me encontre
além da vida e aquém da morte
não se esqueça, ou seja, lembre-se
amanhã pode acontecer tudo e inclusive nada
não concordo inteiramente e não exatamente discordo
em cima do muro e embaixo do toldo

riner maria rilke

"pois arte é infância. arte significa não saber que o mundo já é, e fazer um. não destruir nada que se encontra, mas simplesmente não achar nada pronto. nada mais que possibilidades. nada mais que desejos. e de repente, ser realização, ser verão, ter sol."

carlos drummond de andrade

"Poema de Sete Faces 

Quando nasci, um anjo torto 
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos 
o homem atrás dos óculos e do bigode. 
Meu Deus, por que me abandonaste 
se sabias que eu não era Deus, 
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo 
se eu me chamasse Raimundo 
seria uma rima, não seria uma solução. 
Mundo mundo vasto mundo, 
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer 
mas essa lua 
mas esse conhaque 
botam a gente comovido como o diabo"

metodologia do sapo

viver de primeiras vezes não dá
a vida fica meio nem aqui nem lá
dificil de acreditar

fernando pessoa, trecho do livro do desassossego

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

"Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo sutilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.


Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretenimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida. Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.


Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde. Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.


Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.


Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."

trecho do livro hipnose, fato ou fraude? de adriano facioli

"...e o sentimento é isto: o que ainda não tem forma; tudo o que vivemos sem perceber; o que nos dá bolos na garganta, em nossas vísceras, tudo o que diz alguma coisa, o que nos move sem palavras, a voz recolhida e isolada de nossos mais íntimos desejos..."

fernando pessoa

"conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo. pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo."